"Moving at the speed of life, we are bound to collide with each other"

Assisti ontem ao filme "Crash" (em português, "Colisão") e certamente irá entrar para a minha lista de filmes favoritos. Com um elenco repleto de caras conhecidas e um argumento bastante interessante, o filme aborda o eternamente actual tema do preconceito, numa visão universalista: A de que todo o ser - humano está relacionado com outro, por força dos acontecimentos.

No filme, todo o conjunto de personagens, de uma forma ou de outra relaciona-se entre si. Numa história que começa do fim, voltando ao início para explicar o meio, os factos vão sendo apresentados numa teia complexa de relações, onde todos os personagens estão ali por um motivo. O tema central é o preconceito e a forma como este condiciona-nos a visão da sociedade e a de nós próprios; como turva-nos o comportamento e o pensamento, transformando as ditas “vítimas” do preconceito em agentes ainda mais activos deste sentimento.

O filme defende que todas as pessoas carregam uma espécie de"zanga", que as torna infelizes e que as faz agir em prol do seu próprio benefício, descurando dos sentimentos e das necessidades dos outros. A felicidade é corrompida pelo desejo constante da satisfação imediata, do fazer algo em função do “meu próprio bem”, porque é assim que toda a gente age e porque estão todos contra mim.

Uma série de acontecimentos dramáticos vai envolvendo todos os personagens, que aparentemente não possuíam nada em comum, numa série de clímaxes: O furto de um carro, um acidente de viação, um atropelamento, o abuso de poder policial, a corrupção, diversos assaltos, 2 homicídios, … e a lista não pára.

É daqueles filmes que nos fazem pensar: Onde estão afinal os valores de bondade, amor ao próximo, verdade e justiça? De onde vem este sentimento permissivo de que cometer maldades justificadas com zangas interiores é normal?

O ciclo está viciado: “Sentimos tanto a falta do toque, que chocámos uns contra os outros só para sentirmos alguma coisa”.

Um boato é, na verdade, algo extremamente simples de ser criado. Basta apenas juntar uma história com teor suficientemente interessante de ser transmitida a pessoas sem muito o que fazer com as suas próprias vidas, cuja diversão é concentrarem-se sobre a dos outros. E temos a receita perfeita para um bom boato!

Em qualquer processo de transmissão de informação entre várias pessoas, há sempre dados que são perdidos pelo meio. No processo de transmissão de um boato, estes dados são descaradamente substituídos por outros, à medida da necessidade do interlocutor e da importância para a história, mesmo que não sejam propriamente concordantes com a realidade.

Experimente! Conte a alguém o relato de um acidente de trânsito, por exemplo, e depois peça a essa pessoa que passe esta história a outra e assim sucessivamente. A partir da 3º pessoa, já haverá certamente informação trocada, perdida ou descaradamente substituída.

Imaginemos: Neste acidente estiveram envolvidas 8 pessoas e 3 carros. Ocorreu por volta das 15h, próximo a saída do Parque das Nações da Segunda Circular. Houve 3 feridos ligeiros e 1 grave, e felizmente, nenhum morto. Compareceram ao local, cerca de uma hora depois, 4 carros da Brigada de Transito da GNR e 2 ambulâncias, que trataram dos feridos ligeiros no local e levaram para o hospital mais próximo o ferido grave. Até ao momento não se apuraram os culpados, tampouco conhece-se as causas do acidente.

Quase que ponho a minha mão no fogo em que na 3ª pessoa que chegar esta história, o número de pessoas envolvidas sobe para “aproximadamente 10”, o número de carros envolvidos é substituído pelo número de carros da Brigada da GNR e o número de feridos pelo número de ambulâncias. Na versão transmitida à 4º pessoa, provavelmente já se falará que o acidente foi à uma da tarde e que a polícia e a ambulância demoraram mais de 3 horas a chegar ao local, razão essa que levou à morte do ferido grave. A partir da 5ª pessoa, um simples incidente numa das saídas da Segunda Circular já se transformou num mega acidente às portas da Lisboa, que parou o trânsito por mais de 3 horas e “eu até conheço alguém que levou imenso tempo a chegar a casa nesse dia e tinha a mulher prestes a dar a luz!”

É que o mais maravilhoso acerca dos boatos é o facto de eles nunca serem culpa de ninguém! Inúmeras versões acerca de uma mesma história, circulam livremente no espaço e no tempo, entretendo os desocupados e gerando polémica nos meios de conversa por onde anda. E há sempre alguém que sabe mais qualquer coisa, ou que ouviu mais qualquer coisa e jura por Deus e Nossa Senhora que viu e que está a dizer a verdade.

Um boato nunca é absolutamente verdade. Mas também nunca é absolutamente mentira…
O mais triste é que, regra geral, para quem o recebe e repassa, isto não interessa absolutamente nada!
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida.
A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm.
A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.
Fernando Pessoa